QUESTÃO DE MARCA
Quando nos deparamos com a discussão sobre a questão racial no Brasil, não podemos deixar de mencionar o problema da mestiçagem aqui ocorrida. Sem nos olvidarmos de todo o sofrimento, extermínio e exclusão infligidos ao índio, limitar-nos-emos a estas três “raças”: à Branca, à Negra e à amálgama entre estas duas, a Mestiça. A razão pela qual nos referiremos à “raça” Mestiça (na verdade, a uma delas) substrato da miscigenação entre as “raças” Branca e Negra, é justamente porque a mestiçagem é o cerne da questão racial no Brasil.
Antes, porém, de nos debruçarmos sobre o assunto, insta salientar que o termo “raça” é cientificamente inaplicável aos seres humanos. No entanto, como fora largamente utilizado outrora para justificar a escravização dos negros sob o pretexto pseudo-científico de que algumas características fenotípicas eram a origem de uma suposta degeneração, não caberia agora eliminar o termo, mesmo porque os efeitos de sua larga utilização para os fins supra descritos repercutem até a atualidade.
A miscigenação é o cerne da questão racial no Brasil, pois houve neste país, até a década de 50 da centúria passada, um verdadeiro projeto de europeização e branqueamento de sua população. Tal objetivo somente seria conseguido com o estímulo à imigração européia e à miscigenação gradual entre brancos e negros, a fim de que ao longo do tempo a raça negra fosse extirpada da população brasileira e esta se tornasse cada vez mais próxima da raça “ariana”. Tal projeto traria em seu escopo dois “benefícios”: a eliminação do negro da população brasileira, com a conseqüente europeização de sua população e, como “bônus”, a destruição de qualquer identidade étnica do negro ao longo do processo, o que promoveria a sua desarticulação, prevenindo eventuais revoluções, levantes, etc.
Na verdade, o objetivo que melhor correspondeu à expectativa dos arquitetos deste projeto foi o segundo, haja vista que o negro (graças a Olodumarê!) ainda está presente na população brasileira. No entanto, o mesmo não pode ser dito a respeito da destruição da sua identidade étnica. A despeito da atuação resistente do movimento negro, a identidade étnica da população negra foi paulatinamente sendo destruída ao longo dos séculos.
Um instrumento extremamente eficaz desta destruição é a miscigenação. Esta opera na população negra brasileira a destituição de seus elementos culturais e a aproximação e identificação com a cultura europeia. Além da falta de identificação do mestiço enquanto negro, há um ideal de branqueamento por parte deste que, ciente de que a ascensão social se dá muito mais facilmente para o indivíduo branco, acaba se auto-declarando branco ou, referindo-se à cor da sua tez de forma a negar sua “negritude” buscando padrões cromáticos os mais distantes possíveis da cor “preta” e o mais próximos possíveis da cor “branca”. Isto pode ser facilmente constatado na PNAD (pesquisa nacional por amostragem de domicílios) de 1976, quando fora franqueada a auto-classificação no quesito cor/raça. Naquela pesquisa, foram observadas mais de uma centena de cores auto-declaradas pela população negra/mestiça, a maioria delas utilizadas para negar o gradiente “escuro” da pele.
Atualmente, o censo demográfico utiliza como critério cor da pele a classificação preta ou parda, gradientes estes que definem se um indivíduo pertence à “raça” negra. Percebe-se um percentual de 6% da população auto-declarada de tez preta e 45% da população declarando-se de tez parda, o que perfaz um total de 51% pertencente à “raça” negra. No entanto, referido percentual é possivelmente maior, uma vez que provavelmente há muitos mestiços que se auto-declararam brancos.
O racismo brasileiro, portanto, é cromático. Diferentemente, o racismo operado em países como Estados Unidos e África do Sul é segregacionista/diferencialista, eis que pouco importa o gradiente ou a tonalidade da tez do indivíduo. Na verdade, neste tipo de racismo o que importa é a origem africana (negra) do indivíduo (gota de sangue). O segregacionismo praticado neste tipo de sistema foi o grande responsável pelo fomento de uma forte identidade étnica pela população negra discriminada e segregada pela sociedade, o que inexoravelmente conduziu a uma forte organização social desta, como é o exemplo da luta pelos direitos civis pelos negros norte-americanos. Já no caso da África do Sul, embora o racismo ali praticado possuísse caráter segregacionista, o gradiente cromático da tez do indíviduo levava a diferentes graus de discriminação, de forma que tal população era classificada como europeans (brancos), bantu (negros) e mixed-blood ou colloreds (mestiços). Não obstante, justamente pelo caráter segregacionista do racismo ali praticado, a população negra pôde organizar-se e lutar pelo fim do regime do apartheid.
A característica comum aos dois sistemas (americano e sul-africano) era a sua prática institucionalizada e declarada pelo próprio Estado, na forma de leis de segregação e negação de direitos civis à população negra. Já no caso do Brasil, muito embora a prática fosse institucionalizada, ou seja, praticada pelo próprio Estado, esta não era declarada expressamente. Ao contrário, era veementemente negada sob o pretexto de vigorar aqui uma “democracia racial”.
O mito da “democracia racial” (termo erroneamente atribuído a Gilberto Freire, autor de “Casa Grande e Senzala “, grande responsável pela desmoralização das teses racistas em vigor no Brasil em meados do século passado, através da valorização da cultura do negro) foi largamente utilizado pelo Governo Militar como forma de desmoralizar qualquer ação organizada do movimento negro nos tempos da ditadura. Qualquer menção à questão racial no Brasil era rechaçada sob o pretexto da existência de uma democracia racial neste país.
Segundo o Antropólogo Professor da USP, Doutor Kabengelê Munanga, “nosso racismo é um crime perfeito”. Kabengelê Munanga é um dos principais pensadores a lançar luz sobre a questão racial no Brasil, sendo um dos grandes responsáveis pela conscientização da população negra brasileira, através de sua produção intelectual, através da qual põe a nu e desvenda a engenhosidade do racismo brasileiro.
Diante disso, a outra conclusão não podemos chegar senão a de que é urgente uma ação concreta no sentido de fortalecer a identidade étnica da população negra brasileira.
Nesta esteira, impossível não mencionar a iniciativa de Abdias do Nascimento e Alberto Guerreiro Ramos, responsáveis pela fundação, em 1944, do TEN – Teatro Experimental do Negro, uma tentativa, abortada pela ditadura militar, de reconstrução da identidade étnica do negro brasileiro.
Destarte, concluímos que é urgente a conscientização dos mestiços brasileiros de sua condição de substrato de um projeto de branqueamento da população brasileira. Necessário, outrossim, conscientizá-los de sua condição de negros brasileiros independente da tonalidade de sua pele. Necessário, ainda, a unificação dos critérios de classificação “preto” e “pardo” em torno da classificação racial “negro”, nos próximos PNAD’s e censos demográficos a serem realizados pelo IBGE, porém, não sem antes levar a efeito uma ação concreta de conscientização maciça da população mestiça brasileira a respeito de sua negritude, pondo a desnudo toda a questão racial brasileira.
Somente desta forma iremos superar toda a notória desigualdade a que a população negra brasileira está submetida em relação à população branca, desigualdade esta produzida pelo próprio Estado brasileiro ao longo do advento da República, sem falar na atuação do Estado português, os quais deveriam ter o mínimo de dignidade para reconhecer todo o mal produzido.
EMMANUEL DE OLIVEIRA D’ABRUZZO